Barbara Coimbra



Lábios no conhaque

Há muito penso em Tomas, e é assim, sentado no fundo de um quarto cinza, numa cadeira velha com veludo vinho cor de bordel empoeirado, que o tenho na lembrança, como na primeira vez que o vi, num antigo bar na parte velha da cidade. Lábios no conhaque e olhos no Poema Sujo, tão sujo quanto ele, tão imensamente sujo e pretensioso quanto ele, guardando no seu cume a beleza involuntária dos cabelos emaranhados e dos olhos azul-macondo, numa mistura orgânica de corpos de fadas em conserva em garrafas de vidro enfileiradas na prateleira.
Há muito não vejo Tomas, e é na qualidade de homem-verbo que o guardo no fundo cinza de um poema, numa cadeira velha com veludo azul-macondo empoeirado, lábios no conhaque, olhos nos meus olhos, tão pretensamente sujos quanto os dele, tão involuntariamente escuros quanto os cor de bordel dele, que brilham. Brilham uma luz silenciosa de lábios no conhaque, lábios no conhaque.
"Que desejar olhos brilhantes, é tê-los."



Pouquinho

me perguntaram - está bem?
respondi sincero: pouquinho triste


tô doente de desprezo
, de desanimo
e descaso

então pensei: ah, eu quero me curar!
mas não tinha nem um pouquinho de felipe no vidrinho de novalgina.



Sobre o Livro da Isabelle e como eu o interpretei diferente da sua essência.

São três mulheres, mulheres e não homens, porque é inspirado e Ms Dalloway e Virginia é mulherzinha. Elas são três e tem idades diferentes, sete, vinte e dois e quarenta e três, que se fosse igual não teria muita graça.
Agora me acompanha e esquece o passado delas, elas não tem nem passado nem futuro, são apenas uma cena, três cenas, essas que você vê comigo, esquece que está comigo, esquece que são elas, pensa só na menina, Luzía, sete anos, cabelos cacheados castanho claro para traz, ao vê-la, sua imagem te remete à luz e velas e santidade, está de vestido branco cheio de bordados brancos, luvas e botinhas também brancas, segura um pingente de peixinho como o que Rebeca ganhou, percebeu a semelhança, não é? Mas esse livro não é inspirado em Garcia Márquez, é inspirado em Virginia Woolf, e eu tenho medo dela, sabia? Mas volte a me acompanhar, veja Luzía, anda com suas botinhas segurando o pingente de peixinho dourado com a mão direita, braços largados, olhar atento, ela procura se encontrar, mas não sabe disso, só quer perguntar, mas não solta uma palavra, suas perguntas estão presas na garganta. Agora que a imaginou me diga, atemporal, não acha?
Vamos para Lucia, está sentada, vinte e dois anos, juventude e beleza, mentira. É feia, feia e velha porque se acha feia e velha, também não pergunta, suas dúvidas se encontram num sorriso constrangido durante a aula de anatomia, não tem mais coragem de andar, por isso está sentada. Tem medo de subir, tem medo de cair, tem medo de vertigem, quem não tem? Cantarola baixinho, quer ser como uma bailarina, perfeita, mas ela é feia, feia e velha, eu repito, mas não adianta eu repetir, você não vai me acompanhar nisso. Você me reprime em pensamento:
- A sociedade midiática não sabe mais o que quer. A mulher ideal, colocam-na lisa, brilhante, perfeita... imagino que não deva cheirar mal também.
Mas você não me diz isso, só pensa, você é reprimido como Lúcia, a observa: a mais linda das mulheres. Eu rio discreta, sei o que está pensando, exatamente como era Ana Karenina para o Godard. Nouvelle Vague, meu amor. Você a vê como a mais linda das mulheres e se fosse seu o relato deste livro, a veriam dessa forma também. Mas sabe, eu desprezo um pouco a Lúcia, besteira minha, só porque ela é uma ponte, sabe, isso me irrita um pouco, mas ela não deixa de ter seus créditos, possibilidades mais alcançáveis que as de Luzía. A criança é a fonte de energia do livro. A Moça é a de possibilidades. Porque a criança realmente, é o futuro. Mas ela não pode fazer muita coisa com sete anos. E isso não tira os créditos de Lúcia, que também procura se encontrar, mas já tem essa consciência e se sente frustrada e mal sucedida. Está tão perdida quanto Luzía, tem perguntas e busca em si a resposta e como as trocas mudam os rumos das pessoas.
Ah, claro, esqueci de dizer, o livro é de perguntas, dessas bem boçais e manjadas, mas que todo mundo se faz ou fez algum dia. Sei que deve estar pensando que vai ser cheio de interrogações e frases esdrúxulas, mas não, o livro é de perguntas, mas elas não necessariamente precisam ser feitas diretamente. Porque são como as suas, que como Luzía, Lúcia e Luísa, que ainda não entrou na história, as segura na garganta.
Poderia dar mais detalhes, mas a Isabelle ainda não me contou o resto da idéia.



intenso e calmo. soluço e choro.

É tudo intenso e calmo. retilineo. Sorrio discreta, everybody's changing e eu tiro fotos bonitas, e o céu está bonito e estou tão mais tranquila. Só agora mesmo, que não lembro o meu nome, só agora mesmo, que te vejo nos meus sonhos. Quase esqueço o medo da morte, essa coisa de efemeridade, ele tem razão, não é caminho, mas eu ando num labirinto, ou andava. Tenho óculos escuros.
Mas dá susto as vezes e soluço e choro.
Então abro esse armariozinho de vidro, tão delicado, quase tanto quanto meus ossos de cristal, e olho tudo isso de bolinhas e coisas coloridas, de bulas que me passam despercebidas. Vamos à praia hoje? Gandalf disse que lá teria a areia mais branca que as areias brancas, e o mar mais bonito que os mares mais bonitos, e uma cadeia de montanhas maior que as maiores cadeias de montanhas. Deve ser tão bonito... assim, porque eu tiro fotos bonitas, e o céu está realmente muito, muito bonito, estou tão mais tranquila...
Mas dá susto e soluço e choro outra vez.



cantando e dançando:

Há quem diga que eu dormi de touca, que eu perdi a boca, que eu fugi da briga, que eu caí do galho e que não vi saída, que eu morri de medo quando o pau quebrou.
Há quem diga que eu não sei de nada, que eu não sou de nada e não peço desculpas. Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira, e que Durango Kid quase me pegou
Eu, por mim, queria isso e aquilo, um quilo mais daquilo, um grilo menos disso. É disso que eu preciso ou não é nada disso.
Eu quero todo mundo nesse carnaval...
Eu quero é botar meu bloco na rua! Brincar, botar pra gemer!
Eu quero é botar meu bloco na rua! Gingar, pra dar e vender!

Eles dizem mas é bem mentira, falta tanto pro meu carnaval..



O Sonhar de uma morte-vida.

, num apartamento ou estúdio, em que nada é confuso ou vazado como em outros sonhos, mas limpo e claro e mágico, um lugar meio mágico, com panos vermelhos e ar místico, pessoas brancas, bonitas e jovens, assim meio ciganas. Mulheres. E uma em especial, mais branca, jovem e bonita que as outras daquele cabaré, que me desenhava o corpo com flores de areia, numa tensão sexual que me subia a espinha.

E uma janela em que um velho cigano olha fixamente para um ponto onde nada vejo e me diz, sem nunca me olhar, que está se aproximando, me diz o que, aonde, quando e como, me explica o Mundo e Eu e a Verdade.

E a tensão sexual sumiu. Tudo que ele me disse foi sumindo gradativa e paulatinamente do meu consciente, fui tomada por um desespero, uma vontade insana de saber, pergunto por ele à mais linda das mulheres que ainda desenha em minhas pernas e ela diz, e disso não esqueço: “Ele morreu sua morte definitiva. Caiu na não existência.” E eu pergunto como, que não o vi caindo, nem nada, e se há um segundo atrás observava a janela ao seu lado, como voltei a estar sentada na cadeira com ela aos meus pés. Mas ela sorriu e me disse: “Você não vai se lembrar, não só do que ele te disse, mas aos poucos, vai esquecer até mesmo da existência dele. Porque você está viva, e vai recordar-te apenas quando estiver morta de sua primeira morte.”

Estava ele olhando nos olhos do homem que tinha seus olhos escondidos pelas sobras e seus cabelos, num negro, eram emaranhados. À medida que o olhava, Felipe ia sendo coberto por uma fina camada de areia, uma areia que continha todas as cores do inimaginável, fazia um degrade e, me lembro bem, que formava fundas olheiras escuras e roxas e azuladas no contorno de seus olhos, mas não era conseqüência de enfermidade, insônia, cansaço físico ou mental. Ele estava morrendo. Morrendo sua primeira morte, passando para um outro estado ou plano ou o quer que seja que ainda não tenho certeza de como chamar.

Eu pedia para que ficasse comigo, se quisesse, ele conseguiria resistir com facilidade ao olhar daquele de olhos escondidos nas sombras. Mas ele me dizia com tom de ternura numa voz calma: “estou indo para você, para não esquecer o que ele te disse.” Lembro de ter vontade de chorar, e ouvi-lo dizer que sem saber Aquilo, não teria motivos para viver, não viver essa vida de ruas e pessoas caminhando preocupadas com besteiras e tendo pensamentos conexos e construídos pela razão.

Olhei-me num espelho velho e sujo, e percebi que enquanto ele me olhava com os olhos de ternura e amor, manchas lívidas de areia em cores de todas as cores, escuras e roxas e azuladas apareciam nas pálpebras inferiores dos meus olhos, não em conseqüência de enfermidade, insônia, cansaço físico ou mental. Eu estava morrendo. Morrendo minha primeira morte.

Aquela sensação de morrer uma morte-vida foi a melhor coisa que já senti.
Da mesma forma que ver o rosto do Felipe coberto da areia de cores de todas as cores, e meu próprio rosto no estado reversível, mas semelhante, foi a coisa mais bonita que já vi.

Agora eu era Inês e estava Morta, precisava passar pela prova de que merecia aquela Morte-vida e caso não passasse cairia de vez na Não-Existência. Continuava sem lembrar do que o velho cigano havia me dito, conservava a única certeza de que o que ele me dissera, era a Verdade e que sem ela não haveria motivos de existir.
Morri pelos olhos do Felipe, e por isso, minha prova era a mesma dele. Devíamos passar pela Esfinge, mas não havia enigma, precisávamos matá-la. Com uma espada, ele me protegeu e a matou em pouco tempo, mas sua perna sangrava e eu, senti vontade de chorar por não ter podido ajudá-lo.

Longe dali, no mundo onde as pessoas caminham preocupadas com besteiras e têm pensamentos conexos, construídos pela razão. Junto aos outros, ouvi uma música, muito bonita, bem conhecida, dessas que se ouve a vida toda – se, como eu, tiver pais, jornalistas esquerdistas boêmios ou sinônimos – descrevia em uma frase toda a sensação de morrer uma morte-vida: Eu tropecei no céu como se ouvisse música.

Ainda não lembro do que o velho cigano me disse, conservo a única certeza de que era a Verdade.



Imãs

Que o que mais fez o dia inteiro foi arrumar imãs. Separou dentro dos potes de vidro em três grupos, dois em um pote e um em outro.
Os que falavam da lei de murphy,
Os que eram dito popular
E os que eram vermelhos. Porque gosta de vermelho, vermelho é bonito.
Fora dos potes tinham os outros imãs. Visto que dentro dos potes estavam os imãs de frases, já separados e organizados, e de fora estavam os imãs maiores e mais caros jogados e misturados, arrumou os de fora. Empilhou-os de acordo com o fornecedor, o que de certa forma era quase empilhar por tema. Já que, a moça de Friburgo, que colocava os produtos em consignação, trazia os imãs de cinema que tinham embalagem, era ela a mesma que entregava os cartões magnéticos que se mexiam. Uma tal de Vânia, magrela, chatíssima, vinha com os imãs menores, mas que mesmo assim eram maiores que os de frases, eram também de cinema, mas esses eram só preto e branco enquanto o da moça de Friburgo tinham alguns coloridos. O Osmar, que é um viado velho meio safado, fornecia, também em consignação, os imãs do kama sutra. Uma outra mulher, gordinha com cabelos grisalhos, muito simpática com bochechas rosadas, vinha com os imãs solarizados de gatos, cachorros, cavalos e outros bichos que eram um pouco mais.. Exóticos. Depois de organizar os imãs por fornecedor, e por isso mesmo, por gênero, estalou os nós dos dedos e se sentou num banquinho baixo de madeira no fim do sebo, perto da vitrine dos fundos, onde a Marilyn se oferecia com uma pose classuda. Ficou ainda menor do que já era, quando sentou no banquinho e começou a limpar com um pano laranja e antigo os Pensadores. Demorou-se bem mais do que com os imãs, parando para admirar a capa azul do Spinoza exatamente igual a do Descartes, mas que a fazia lembrar de um pretenso filósofo que apareceu num dia desses de chuva e Raul Seixas, mostrando o inicio do universo com um brinquedo de arame do fórum social mundial.



Terça, 08/02/2005

Estávamos sentados na varanda, lembro bem, já passava das seis da tarde, mas ainda era claro o dia. Eu, sentada no sofá, ao meu lado, um certo rapaz alto, menino do gummy, Lucas Lodi. Na nossa frente, em uma das poltronas verdes (a da esquerda), a primeira nota, Dó, na outra, o tal filósofo, Felipe. Conversávamos sobre RPG, para variar um pouco, mas dessa vez até que estava divertido, Dó especificava qual o grupo de fadas que tinha me trocado com um bebê humano, e por que diabos eu não tinha percebido ainda que meus olhos eram pretos e meu rabo cor da pele. Felipe cortou um pouco o assunto e começaram a falar do Magos - A Ascensão.
Peguei a agenda, eu ainda escrevia na agenda. Depois, Dó foi embora, Larissa chegou. Nunca poderia imaginar o que iria acontecer, e já achava tudo tão bonito.

"Não esquecer:
Dia bonito hoje, oito de fevereiro, as flores rosas embaixo da janela do terraço estão mais bonitas, são três. O verde está mais verde e o céu é azul-ciano. As nuvens são brancas, muito brancas e baixas.
Musica: Le Noyée
Hora: 19:12
Lembrar de deixar de acreditar em Magos. "



Degrau após degrau.

Como que numa seqüência contínua, descendo as escadas, degrau após degrau, degrau após degrau, interminável degrau estritamente igual ao último,
que aquela escada em caracol mostrava-se igual a anterior, e a anterior, e a anterior, fazendo-se assim, cópia contínua de uma lembrança de muitos degraus acima, de um outro andar, num outro tempo, assim quase que igual a esse, repetindo o mesmo quarto degrau descendo do terceiro andar, ou do décimo segundo, não importa qual, e repetindo a mesma lembrança de um gemido abafado e da vontade de escrever um nome no céu.
E assim, ininterruptamente, eu descendo, degrau após degrau, tentando distinguir o passo, tentando separa-lo do andar, e Como?, você me perguntava, Como?, e eu descia mais um degrau, mirando nenhum futuro pela frente, descendo, descendo, degrau após degrau, Como separar o passo do andar?, e mais um degrau, como que numa seqüência contínua, cansada, o tempo me alcançou com rugas entorno à boca, cabelos caídos sobre os ombros, já secos e emaranhados, agora quase morta, mostro-me cansada à fresta de sol, descendo um degrau depois do outro, um pé depois do outro, na mesma seqüência, na mesma lembrança, na mesma desesperança, quando então parei.
Faltou estimulo, o corpo caiu.
Foi rolando, degrau após degrau, degrau após degrau, sem nunca chegar no chão.



um sussurro no seu ouvido:

desejo olhos brilhantes.